quarta-feira, 20 de maio de 2009

Sombras

"Palavras rápidas não doem."


Atirou-se na cama com este pensamento. O cabelo e o corpo ensopados foram deixados em segundo plano.



Cai o pano, ocultando as almas marcadas que entram. Tragédias são belos espetáculos para se ver, para filosofar sobre a condição humana; porém, quando se vive uma, a beleza se esvai e as saudades permanecem açoitando a alma. Sabia, contudo, que nem toda a vida deve carregar estas nuances dramáticas de cinza e sombras. Nem sempre a tempestade resolve ou se devolve. Espera-se.


E era isto o que fazia. Esperava, e vivia um dia após o outro. Era o único remédio que encontrara. Os pequenos detalhes lhe diziam sobre o dia, que ela não estava vivendo tudo repetidamente. Falas decoradas, figurino ajustado. Só a sua face não se encaixava. Sua face vinha de outro mundo, de outra época. Sua face era marcada pelo tormentos dos ecos nas paredes e nos espelhos.





Tessália, Grécia. 604 a.C.

As mãos sobre a boca davam o testemunho do atraso. Ela gritara e envergonhava-se disto. Anos de controle, de disciplina. E por um pesadelo, gritava como uma criança. Que iriam dizer as outras sacerdotisas? Que a recém-chegada espartana temia, afinal. Temia, porque fora exilada.

Fora condicionada a agir, entretanto. Por isto, mal percebeu o tempo que decorreu entre a tentativa de abafar o grito e o amanhecer. Tinha fragmentos do que acontecera, os pés descalços sobre a relva, e depois sobre a terra, o manto fino que ela apertava contra o corpo, a fonte onde deteve-se por minutos. Aquelas imagens não faziam sentido.

Adormecera na parte alta, e despertara antes do astro-rei, como de costume. Achava que deveria estar desperta para saudar Apolo quando ele chegasse. Sabia que as outras consideravam seu comportamento estranho, e as palavras chegavam aos seus ouvidos com o vento.

- É uma selvagenzinha! Sempre metida no meio da floresta, ora na montanha, e ontem mesmo, nadando! Não sei como a aceitamos aqui. Não é o lugar dela! Seria de mais utilidade em uma Panicéia, não no Templo de Apolo. Em Delfos, não aceitaríamos isso. Mas fazer o quê? Até um recanto do fim do mundo precisa de sacerdotisas e oráculos. Ai! Não assim, por Héstia!

A tagarelice descabida não parava. A todo momento eram críticas, e correções e reclamações da velha.

"Charlatã!" - foi o único pensamento coeso da jovem em relação à outra mulher. Mesmo com a hostilidade silenciosa, continuou com o trabalho.

O recipiente com água tombou ao chão, juntamente com a jovem que o carregava. Ambos sobrecarregados. como bem demais como esconder as lágrimas, uma gota, porém, faz todo o conteúdo transbordar...

- Nós nos condeneramos. - Sentia os lábios movimentando-se, mas as palavras não eram suas. Eram um eco distante, mais imposto que sugerido. - Ele está chegando.

Rodava o jarro com mãos ágeis, semi-consciente do que falava ou fazia. Mas o forasteiro mudaria tudo...





Avalon

A severidade no rosto de Morgana extrapolava o usual. Era a visão da Deusa exigindo sangue, vingança e domínio, ao mesmo passo em que havia lampejos de compaixão.

Era uma visão terrível para quem já sentia-se enferma, desalmada e perdida. Se todos os deuses se apiedassem dela, ainda assim aquele castigo feriria sua alma. Irremediavelmente.

Precisava afastar-se da Ilha. Precisava fugir. Não suportaria testemunhar o que aconteceria dentro de minutos, embora já tivesse visto as cenas repetidamente por dias, embora soubesse exatamente qual seria o destino de Kevin.

Kevin, que mostrara-se doce e amoroso, apesar de tudo. Kevin, que fora sua porta para o mundo. Não apenas do corpo, nem o puramente físico, mas o mundo fora de sua reclusão. As cortes, o colorido frenético das festas, as fogueiras, a música. Ele lhe mostrara a vida em plenitude.

Não se perguntava mais para onde estava indo quando o clarão aconteceu. Não era necessário. Estava retornando. A terra e o ar foram substituídos por água e frio, e a angústia por uma pontada aguda no peito. Acontecera. Aos dois.




Camelot

"Hoje o Bardo calou-se,
estafado.
Para o horizonte curvou-se,
condenado
à sina do pecado.

A noite estende
o negro veludo.
A noiva não compreende
os trajes de luto.

A donzela foge,
pendura-se no sagrado,
sua alma escorre,
junta-se ao lago.

Ó almas nobres
de destino trágico selado,
de quantos crimes
sereis acusadas?

O fogo persistente
clama por séculos
a alma do presente,
e pelo reencontro."

Silêncio. Foram longos minutos de silêncio e um golpe aplicado friamente. Jamais imaginara-se capaz daquilo. Não se reconhecia. Aquela não era ela. Não poderia ser. Aquele não era o destino dela, nem o de Kevin.

Encontrava-se desconsolada e desolada. Era um luto anunciado.

Antes da lua desaparecer, os raios iluminando seus aposentos nas noites anteriores se transformavam em relâmpagos, raios de uma terrível tempestade. O amor e as vidas aprisionadas na árvore...




Londres, 2008

Já era o segundo ano na cidade e Nimue descobria um detalhe diferente a cada dia. Descobrira que apreciava o silêncio e a calmaria das tardes de outono, com as folhas forrando o chão, e a luz do sol amena.

Prefiria caminhar, e sempre encontrava uma rota diferente nos trajetos entre o campus e a casa, a casa e o teatro e entre as variáveis.

Surpreendera-se com um olhar. Um olhar, apenas, fora o suficiente para derreter a geleira dentro dela. Mal dera-se conta deste resfriamento até então.

Por alguns dias, perseguiu quase obsessivamente o dono do olhar, sem sucesso. E sem imaginar que ele pudesse estar tão próximo dela...

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