terça-feira, 16 de novembro de 2010

Momentâneo? Eu não saberia...

Nunca soube de nada. E é essa ignorância que me aflige. Sou como um homem das cavernas tentando operar um equipamento delicado. Algo assim. Não quero perder tempo tentando achar metáforas mais elaboradas. Você sabe...

Todas essas coisas, essa fragilidade extrema - A vida, enfim, é aflitiva. - E desculpe-me, tomarei muito do seu tempo por ter muito o que dizer. Embora a minha intenção fosse ser breve.

Não sobre o que é justo ou não, seriam apenas divagações sem sentido. Não há justiça no Universo.

Tomarei de ti todas as dores. -Isso é o que aconteceria, se houvesse justiça- e me negarias as dores... Ou não. Ou não haveria dores.

Apenas nossas pegadas em todos os lugares do mundo, sobre a neve ou sobre a areia.

Inebriados, apenas...

Como se não existisse mais nada na vida, a não ser os atos de respirar e amar.

Nessa cadência quase doce. Respiro-respiras. Respiro-te, respira-me. Ama-me sabendo que amo-te. Amo-amas.

Só assim não haveria defeito ou sofrimento.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Dentro de um aquário, como se tudo caísse.

Não quero, nunca quis. Vazio, nada, vácuo...Tudo, agora.

Enlouqueço? Não sei, não me vejo e não me reconheço. Esse é o meu corpo? Essas são as minhas mãos? Essa é a minha sombra? Está tudo tão distante de mim... Sou inalcançável.

Desapareço entre dores invisíveis e irreversíveis. E entre as luzes do século, dissolvidas.

Os gritos ecoavam dentro de mim, pensamentos labirínticos, e não tive alternativa, senão guardá-los, como jóias dolorosas.

Essas sombras apavoradas me engolem, sufocam-me com as palavras quase ditas.

Me perdi desde sempre na multidão de cores e sons. De longe, posso apenas contemplar.

sábado, 23 de maio de 2009

O Filósofo

A primeira vez que Leo Soris e Nimue deram-se conta de que pertenciam à mesma espécie, foi anos após serem apresentados.

Leo largara os livros e os bares por um dia e fora procurar pelo complemeno que faltava-lhe naquela altura da vida: uma companhia.

A visão da garotinha crescida, exatamente da mesma idade da sua irmã mais nova, quase o apavarou. Nimue não poderia estar mais bonita, por outro lado. Ainda havia algo de delicado, infantil ou angelical em sua expressão, mas a ferocidade do olhar intensificara-se com os anos.

- Você age como a maré. - Dissera-lhe um dia, convicto de que aquela era uma verdade tão fundamental quanto o céu azul, ou o decorrer de dias e noites.

E ela era, de fato, a maré sedenta por emoções, sedenta por sentir. Navegava junto com a montanha-russa de emoções do primeiro amor, do primeiro beijo, e sempre queria mais. Era algo puro. Eles uniam-se pelo conhecimento e compreensão mútuos um do outro.

Cada um fizera do outro o porto seguro, onde poderiam ancorar qualquer que fosse a situação. Ou assim parecia...

Nimue desejava acreditar que o ato seguinte fora causado somente pelo passado sofrido de rejeição, mas ressentia-se em ver que fora impotente e que jamais poderia impedi-lo.

Ele era o Enforcado. O mesmo à frente dela, em cores fortes, na carta de tarot. Ele era um de seus castigos. Era a sua punição maior, a punição conhecida. Ela sabia que chegaria cedo ou tarde...

Ele matara uma parte preciosa dela. Nos volteios da mente conturbada pelo luto insuportável e pelo incoformismo, ela acreditava compreendê-lo.

Leo era o filho do meio da família Soris. Tinha uma irmã mais velha e outra mais nova. A mais jovem, Sophie, tornara-se a menininha de Leo. Este afeto incomum era explicado por fatores além da ternura que se vê entre irmãos, pelo fato de desde criança Sophie apresentar doenças seguidas, ou por laços sanguíneos.

Apesar de terem um teto, educação, saúde e comida, tinham apenas um ao outro.

Monica, a irmã mais velha, do alto de uma grande diferença de idade, mudara-se a fim de frequentar a universidade. A mãe não passava de uma sombra, ressentida, magoada, traída, e desesperada, que refugiava-se no trabalho. O pai trocava a jornada tripla de trabalho - que parecia ser mais por avareza do que por necessidade - por uma dupla jornada familiar: Constituíra outra família a apenas cem quilômetros do outro lar.

A ausência paterna era vista até como um alívio para Sophie e para Leo. De Sophie, ele cobrava coisas fora de alcance para uma criança ainda em tenra idade, construíra uma prisão para ela. E Leo tinha sorte quando o pai fingia não saber de sua existência, porque uma vez ciente da presença do garoto, o homem saía de controle por razões inexplicáveis.

Leo refugiara-se nos livros, na filosofia, no ato de lecionar que ele considerava tão nobre. Sophie passara por provações inimagináveis na tentativa de provar a si mesma que conseguiria algo da vida, torturara-se noite e dia para sentir-se menos miserável.

Nenhum dos dois jamais mencionara o passado familiar, mas quem quer que convivesse com eles durante a infância perceberia algo errado...

E Nimue percebeu. Percebera que a semelhança entre eles era enorme. Intuíra que sua melhor amiga e o irmão mais velho dela tinham problemas senão iguais, muito parecidos aos dela. Teve um impulso, vontade de agir para ajudar certo dia, mas fora detida por algo muito mais forte que a consciência...

"Não interfira!"

Tal pensamento tornara-se uma constante. Pensamento intruso, jamais partiria dela. Ela precisava agir, de alguma forma...

2:35

Madrugada insone. Alvoroço. Castigo, crime e libertação. Um funeral durante a manhã de sol, em meio a irmãos aflitos.

Podia apenas guaradar as memórias, tentar não julgar aquele que se fora. Parar de buscar explicações, parar de achar que era egoísmo, porque ela sabia que era algo além disso...

Restava-lhe, talvez, pedir desculpas aos outros enlutados, mesmo sem ter um motivo concreto.

Leo partira da mesma forma que vivera, nos bastidores. Holofotes jamais o atraíram, e o único momento de atenção que tivera na vida provavelmente foi insuportável. O nó na garganta fora incômodo demais? Certas indagações tomariam a eternidade. E tempo é o que menos se tem, então todos fecham as janelas e as cortinas e sufocam seus fantasmas...



Nossas vidas são descontinuadas. É saber do futuro tendo a sombra do passado a golpear minúsculas esperanças. Queremos tudo. Tudo é sempre demais, sempre é sempre demais...

_

Era seu primeiro mês ali, e já havia uma pilha imensa de livros no cômodo pequeno, escuro frio e barulhento. Dispensava qualquer explicação racional para estar ali. Dera-se conta no momento que chegara. Aquele jamais seria seu mundo. A cidade a sufocava com o relevo montanhoso, e ela acostumara-se a idolatrar o horizonte amplo e respirável.


Mais, havia a vida real. Havia as contas a pagar, o futuro que parece tão distante, as vidas que passam por ela, a fragilidade, o declínio, a súplica. Havia as expectativas em torno de si, terrivelmente aumentadas.

Sempre fora a "criança prodígio", mas cansara-se de tal pantomima de agradar com desempenho. Não precisava provar nada a ninguém. Sua real necessidade era viver, experimentar.

Uma ligação no meio da noite, e ela já sabia o que tinha acontecido. Intuíra, e fora impotente demais para evitar os desígnios misteriosos da vida. Restava-lhe esquecer as explicações e guardar a memória de seu irmão. Restava-lhe tentar encontrar forças.

Eram essas as lembranças que a assombravam a cada contato que tinha com Nimue. Suas vidas entrelaçavam-se de tal forma que jamais se desatariam, e jamais permitiriam uma aproximação como a de antes. Tudo devido à perda. Nenhuma delas sabia como lidar com isso, era a verdade.


- E hoje, senhoras e senhores, cada um dará um desfecho à história da Princesa Perdida. Quem quer começar?

Sophie olhou com ternura a mãos pequeninas e frágeis erguendo-se com animação. Talvez aquela fosse a emoção de uma mãe orgulhosa, que nutre seus filhos com a esperança...

- A tia Sophie é doidinha... - Mais do que um julgamento, indo daquelas crianças, aquilo era um elogio.

Sophie rodopiou, apertando o nariz de palhaço e fazendo o jaleco aberto esvoaçar. Colocou uma mão sobre os olhos e com a outra apontou, para descobrir os olhos logo depois.

- Você começa, Jim.

Jim colocara a mão no queixo, com a austeridade de quem faz questionamentos filosóficos e esboçara um sorriso.

- Ela precisa voltar para casa. Por isso, terá que viajar bastante. Vamos começar contando a história da viagem.


Respirar ainda era um suplício. Contudo, envolvera-se tanto quanto Sophie na história, e isso a fazia esquecer a própria dor. Aquele era o remédio para a sua alma, que ela negligenciara por semanas devido a problemas com o vício.
Percebia o frio do início da manhã como uma bênção, um congelamento bem-vindo de emoções e pensamentos tumultuosos. Passado, presente, futuro e possibilidades divergiam e convergiam na direção dela, bem em frente aos seus olhos.

Se alguém deseja saber o que é a loucura, deveria experimentar isso. Muito melhor do que doses e mais doses de álcool...

A noite anterior passava-lhe intermitentemente qual um filme em câmera lenta, cada detalhe agarrando-se a ela. Tal qual a lembrança de um momento, quando todo o resto deixava de importar.

Não importava a pesada e trágica maquiagem desfazendo-se, após horas a fio de palco, após horas a fio de esforço e tragédia. Fedra, trágica traidora.

Não faria diferença alguma que ela tomasse mais algumas doses de destilados, ninguém iria ao seu encontro. Ninguém perceberia quando ela passasse. Jamais se importariam com a triste caricatura de uma insone. Ou com o cigarro a meio caminho, entre a mão e a boca, a luta entre vontade e necessidade. Ninguém. Universo de ninguém.

O jogo resumia-se a tudo ou nada, e ela era parte da multidão de “ninguém”.

Talvez...Talvez ela devesse recorrer àquele velho recurso. Passara dois anos sem abusar das drogas ilícitas – o que não excluía tarjas-preta facilmente obtidos. – Já começava a sentir falta. Não a falta da abstinência, mas a quase-saudade quase-doce de uma terra prometida ou de uma infância esquecida.

Sequer ousara perguntar-se porque chegara ali. Motivos e explicações estavam fora de alcance. A custo, ignorou as peças que sua mente insitia pregar-lhe; latas de lixo, postes de iluminação, e árvores, mesmo os balanços da praça pareciam persegui-la. Acusavam-na.


Disfarçou o melhor que pôde – e estava convencida de que podia bastante, ela era uma excelente atriz, afinal – o tremor, e exibiu um sorriso nervoso por alguns segundos, antes de aproximar-se do homem. Talvez fosse ele quem ela procurava.

- Muito cedo para já estar fora de casa, não acha? Por acaso você é, ou conhece alguém chamado Gibreel?

A voz não era mais do que um murmúrio. Nimue jamais atribuíra a maneira contida de falar à timidez. Pelo contrário, de outro modo, seria incapaz de expor-se tanto. Estranheza. Desde muito cedo, pensava em dois mundos, separados por um véu. O lado de dentro, o isolamento, a segurança; o lado de fora, o exterior, a liberdade, os atrativos do desconhecido, o mundo do outro.

Fitou-o enquanto aguardava pela resposta. Talvez tivesse falhado na tentiva de esconder a tensão. Questiona-se se ele repararia no seu estado lastimável, ou se essa preocupação era infundada. Ao menos, ele não virara as costas para ela...ainda. Era algo a se considerar.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Sombras

"Palavras rápidas não doem."


Atirou-se na cama com este pensamento. O cabelo e o corpo ensopados foram deixados em segundo plano.



Cai o pano, ocultando as almas marcadas que entram. Tragédias são belos espetáculos para se ver, para filosofar sobre a condição humana; porém, quando se vive uma, a beleza se esvai e as saudades permanecem açoitando a alma. Sabia, contudo, que nem toda a vida deve carregar estas nuances dramáticas de cinza e sombras. Nem sempre a tempestade resolve ou se devolve. Espera-se.


E era isto o que fazia. Esperava, e vivia um dia após o outro. Era o único remédio que encontrara. Os pequenos detalhes lhe diziam sobre o dia, que ela não estava vivendo tudo repetidamente. Falas decoradas, figurino ajustado. Só a sua face não se encaixava. Sua face vinha de outro mundo, de outra época. Sua face era marcada pelo tormentos dos ecos nas paredes e nos espelhos.





Tessália, Grécia. 604 a.C.

As mãos sobre a boca davam o testemunho do atraso. Ela gritara e envergonhava-se disto. Anos de controle, de disciplina. E por um pesadelo, gritava como uma criança. Que iriam dizer as outras sacerdotisas? Que a recém-chegada espartana temia, afinal. Temia, porque fora exilada.

Fora condicionada a agir, entretanto. Por isto, mal percebeu o tempo que decorreu entre a tentativa de abafar o grito e o amanhecer. Tinha fragmentos do que acontecera, os pés descalços sobre a relva, e depois sobre a terra, o manto fino que ela apertava contra o corpo, a fonte onde deteve-se por minutos. Aquelas imagens não faziam sentido.

Adormecera na parte alta, e despertara antes do astro-rei, como de costume. Achava que deveria estar desperta para saudar Apolo quando ele chegasse. Sabia que as outras consideravam seu comportamento estranho, e as palavras chegavam aos seus ouvidos com o vento.

- É uma selvagenzinha! Sempre metida no meio da floresta, ora na montanha, e ontem mesmo, nadando! Não sei como a aceitamos aqui. Não é o lugar dela! Seria de mais utilidade em uma Panicéia, não no Templo de Apolo. Em Delfos, não aceitaríamos isso. Mas fazer o quê? Até um recanto do fim do mundo precisa de sacerdotisas e oráculos. Ai! Não assim, por Héstia!

A tagarelice descabida não parava. A todo momento eram críticas, e correções e reclamações da velha.

"Charlatã!" - foi o único pensamento coeso da jovem em relação à outra mulher. Mesmo com a hostilidade silenciosa, continuou com o trabalho.

O recipiente com água tombou ao chão, juntamente com a jovem que o carregava. Ambos sobrecarregados. como bem demais como esconder as lágrimas, uma gota, porém, faz todo o conteúdo transbordar...

- Nós nos condeneramos. - Sentia os lábios movimentando-se, mas as palavras não eram suas. Eram um eco distante, mais imposto que sugerido. - Ele está chegando.

Rodava o jarro com mãos ágeis, semi-consciente do que falava ou fazia. Mas o forasteiro mudaria tudo...





Avalon

A severidade no rosto de Morgana extrapolava o usual. Era a visão da Deusa exigindo sangue, vingança e domínio, ao mesmo passo em que havia lampejos de compaixão.

Era uma visão terrível para quem já sentia-se enferma, desalmada e perdida. Se todos os deuses se apiedassem dela, ainda assim aquele castigo feriria sua alma. Irremediavelmente.

Precisava afastar-se da Ilha. Precisava fugir. Não suportaria testemunhar o que aconteceria dentro de minutos, embora já tivesse visto as cenas repetidamente por dias, embora soubesse exatamente qual seria o destino de Kevin.

Kevin, que mostrara-se doce e amoroso, apesar de tudo. Kevin, que fora sua porta para o mundo. Não apenas do corpo, nem o puramente físico, mas o mundo fora de sua reclusão. As cortes, o colorido frenético das festas, as fogueiras, a música. Ele lhe mostrara a vida em plenitude.

Não se perguntava mais para onde estava indo quando o clarão aconteceu. Não era necessário. Estava retornando. A terra e o ar foram substituídos por água e frio, e a angústia por uma pontada aguda no peito. Acontecera. Aos dois.




Camelot

"Hoje o Bardo calou-se,
estafado.
Para o horizonte curvou-se,
condenado
à sina do pecado.

A noite estende
o negro veludo.
A noiva não compreende
os trajes de luto.

A donzela foge,
pendura-se no sagrado,
sua alma escorre,
junta-se ao lago.

Ó almas nobres
de destino trágico selado,
de quantos crimes
sereis acusadas?

O fogo persistente
clama por séculos
a alma do presente,
e pelo reencontro."

Silêncio. Foram longos minutos de silêncio e um golpe aplicado friamente. Jamais imaginara-se capaz daquilo. Não se reconhecia. Aquela não era ela. Não poderia ser. Aquele não era o destino dela, nem o de Kevin.

Encontrava-se desconsolada e desolada. Era um luto anunciado.

Antes da lua desaparecer, os raios iluminando seus aposentos nas noites anteriores se transformavam em relâmpagos, raios de uma terrível tempestade. O amor e as vidas aprisionadas na árvore...




Londres, 2008

Já era o segundo ano na cidade e Nimue descobria um detalhe diferente a cada dia. Descobrira que apreciava o silêncio e a calmaria das tardes de outono, com as folhas forrando o chão, e a luz do sol amena.

Prefiria caminhar, e sempre encontrava uma rota diferente nos trajetos entre o campus e a casa, a casa e o teatro e entre as variáveis.

Surpreendera-se com um olhar. Um olhar, apenas, fora o suficiente para derreter a geleira dentro dela. Mal dera-se conta deste resfriamento até então.

Por alguns dias, perseguiu quase obsessivamente o dono do olhar, sem sucesso. E sem imaginar que ele pudesse estar tão próximo dela...

terça-feira, 19 de maio de 2009

Os Demônios Sutis

Fragilidade.

A vida é delicada. Asas de borboletas, pétalas de flores. Um toque, ou uma maneira incorreta de tocar, põe tudo a perder...

Acontecia a qualquer hora. Sem aviso. Pequenas mortes súbitas. Pequenos pontos de ferrugem acumulando-se pouco a pouco, o arrastar das horas, a chuva fina que não passa (mas pesa). Eternas interrogações.

Suspirava porque recusava-se mesmo a respirar como os outros. Os Outros, as Visitas, a espantavam. Com todos os olhares críticos, funestos, vazios. Opacos. Reais. Mais a assustava era a realidade, olhares como objetos palpáveis e a piedade forçada que refletiam.

“E...Deus!” – Exclamava, para logo depois perder-se. Existiria mesmo um Criador, uma Inteligência Superior ou o que fosse? – “Não, não. Impossível. Quero crer no impossível”.

Ensaiava a queda. Com saltos. Fuga interrompida. Retalhos de seda no arame farpado. Não era um momento para a platéia.

Distanciando. Aproximando. O ritmo mudava, e as expressões pavorosas ficavam, espreitavam. Almas mumificadas em casulos.

Não se sustentavam. Quem não se sustenta, precisa de clausura. Ela desfizera completamente o próprio casulo, a custo de sustos, e até a custo de sonhos. Tudo para viver o mundo. Ou viver fora dele.

Divagava e alucinava. Se tivesse um mar perto, cedo ou tarde entraria e deixaria-se tragar para o fundo, apesar de saber nadar. Sonambulismo como cargo vitalício. Era uma sonâmbula. Entorpecida, pálida, magra demais: quase invisível. Quase, porque sabia que exisitia, e sabia que a imagem no espelho é um reflexo.

Apanham-na. Mal sabem que a prisão começa a esfacelar o ser já fragilizado. Mal sabem que ela se entrega totalmente a tudo, e a todos...

Agora são as mãos dos outros o objeto do terror, mãos sequestradoras. Apreendem o ser esfacelado.

Em algum plano distante, em alguma perspectiva que vem do interior dela, a platéia aplaude a fragmentação. É apenas isto o que querem: não pedaços, mas um grão dela.

Colocam-na atrás de grades douradas, algo que já deixou de importar há muito. Jamais faria diferença, na verdade. Grades são grades, certo? O mesmo método de privar da liberdade. O ouro não importa. O tempo corre sem clemência, o passado espreita pela janela da vida e sopra segredos ao vento...



A mão pequenina do garoto afastara-se dos cabelos dela para pousar sobre a boca de criança.

- Psiu. Você não quer acordá-la, Viviane. Se a tia Sophie descobre que estamos aqui, estamos no sal.

Viviane retorceu os lábios, contendo o choro.

- Ela vai ficar bem, não vai?

- Que pergunta! É claro que vai. Não vê que nós estamos aqui, de pé? Ela vai melhorar logo.

As crianças conversavam através de sussurros. Quando abriu os olhos, a luz do quarto sobrepujava a luz da tarde alta. Tudo estava ainda desfocado, via apenas vultos alternando-se com o clarão.



Perder acrescenta. Acrescenta distância no olhar e medo de deixar-se tocar.

Os passos de Sophie Soris eram apressados como sempre, porém ainda causavam estranheza entre os demais funcionários sorumbáticos do hospital. Em suas palavras, eles pareciam mais doentes que as pessoas que eles atendiam diariamente.

Prontamente impuseram-lhe a loucura. Não sabiam que ela levaria a sério, e daria um golpe de Estado todas as terças-feiras. Rir seria lei por um dia, no pequeno reino de paredes brancas.

Aquela terça-feira, entretanto, era atípica. Sophie sentiu a máscara cair. Os sentimentos conturbados inundavam-lhe o ser. O mundo girava rápido demais, enquanto seus passos eram miúdos, vagarosos, sofridos.

O semblante retomara a seriedade que não fora visto por anos, uma rigidez quase desconhecida. Tentara a todo custo fingir que estava tudo bem, tentara retomar a essência que impusera a si mesma. Mas não admitiria perder mais alguém.

"É uma criança!"

O dia carregava surpresas.

Deparou-se com Michael e Viviane adormecidos ao lado de Nimue. Ela, aparentemente, tinha recobrado a consciência, mas ainda assim, os olhos pareciam seguir objetos irreais e a fraqueza era mais do que evidente. Não era hora de censurá-la, mas os olhos de Sophie denunciaram o desgosto.

- Sei o que está pensando. Mas cheguei a um ponto em que nem eu sabia o que estava fazendo, ou onde estava.

As palavras foram pronunciadas em um fio de voz trêmula. Sophie apertou os olhos e os punhos, na tentativa de defender-se de perigos incorpóreos. De fantasmas e memórias. Jamais poderia cogitar que a melhor amiga, desde a infância, algum dia atentaria tão violentamente contra a própria vida.

Que demônios a atormentavam tanto, se as experiências eram, de certa forma, semelhantes? Sophie lutava contra o pensamento egoísta, negando-o. Foi inevitávvel, entretanto. Havia uma inversão de papéis ali. Um amor pode ser encontrado cedo ou tarde na vida, mas um irmão jamais é substituído.

Depois de cinco anos, percebe-se que não se pode evitar a morte, não se pode evitar a saudade, a lacuna gritando dentro da alma, implorando por algo que complete aquela parte perdida. Talvez Nimue estivesse certa, na tentativa de finalizar tudo. A morte preenche. A falta preenche, acrescenta.

terça-feira, 5 de maio de 2009

O Enigma do Amor

"O conhecimento que tenho de ti
é um dos meus complexos castigos.
Adivinho através do véu que te cobre
o canto de amor sufocado,
o choque ante a palavra divina, a antecipação da morte."
(Murilo Mendes)







As vontades são monstros. Sempre há um certo assombro naquilo que se quer. É simplesmente humana a vida de assombros, viver em temor. É necessário sobreviver, então criam-se perigos e abrigos.


Em todo o canto, há construtores sofrendo de vertigens em torres altíssimas, e alguém que os eleva.


A jovem atriz que cede corpo e alma para antigas tragédias, e cuja vida confunde-se aos inumeráveis dramas, pode ser encontrada em qualquer lugar. Ela ainda é demasiado nova, alguns podem dizer. De fato, mas a trajetória já a fez vergar há muito...


No extremo oposto, inalcançável como se estivesse no alto da torre, está o harpista. O pequeno deus, o pequeno sol; a promessa de poesia e luz na vida que se configura sombria desde o início.


Mundos opostos encontram-se, colidem. Ardem. Seus protagonistas caem vertiginosamente. Ou talvez estejam se elevando...

- ...desvarios de Eros.

Por uma semana, o sorriso abandonara a expressão habitual de zombaria. Compreensões incompletas. Eros construía sonhos alicerçados em melodias perenes. Nimue habitava estas promessas, e sorria como jamais havia se permitido.

Ninguém gosta de ver algo belo se desfazendo. Poucos apreciam restaurar algo belo: é necessário tempo, esforço e dedicação.

O Amor lhe devolvera sua essência, e os seus dias. Ele em pouco tempo tornara-se o alento, o porto seguro; restaurava a alma. Chegava a ser uma quase-felicidade proibida. Quase perfeita. Amor entretanto, sofre a atração irresistível e magnética pelo sofrimento. Era apenas uma questão de tempo, ou um escorregão, e tudo se perderia. Ninguém gosta de ver algo belo se desfazendo...

A chuva fina era persistente. Os dois encontraram-se em frente à edificação antiga, datada de algum dos séculos passados. Ele, com os passos apressados e a aparência impecável. Ela, encolhida a um canto da escadaria, sem forças para fingir segurança. Amantes aturdidos com a vida que passa, escoa sem querer, com as tempestades cotidianas.


- Saia da chuva, Nim. Não apreciarão a visão de uma heroína ensopada...

Vagarosamente. Como nas tragédias. Uma pausa para os suspiros e para os sobressaltos. Ela agradeceu silenciosamente pela chuva misturando-se às lágrimas.


Levantou-se e lutou contra os passos trôpegos, até finalmente desabar nos braços dele. O que poderia dizer? O que ousaria dizer? Quanto teria que ocultar? Desacostumara-se às dores constantes.

"Não. Mas de qualquer forma, sempre apreciam uma heroína trágica morta. Lamentam-se, depois conformam-se. Era o destino. E do destino eu sei mais do que qualquer um gostaria. Este conhecimento todo de nada me serve, sequer posso partilha-lo. Não se evita o destino..."

- Nim! - O assombro era uma grande exclamação. Ele, pela primeira vez, gritava que não entendia. - Gostaria muito de saber o que está acontecendo...

O monstro emergia do turbilhão interior. Imagens e diálogos da infância, profecias em sonhos de cinco anos antes, e a noite anterior. A primeira noite na companhia de outro em cinco longos anos. E em que data! Era apenas a véspera, na verdade, mas todo aquele mês arrastava-se para ela, assombrada que era pelo castigo que ela mesma se impôs. Mesmo o sangue do flagelamento de devotos que vão muito além de suas crenças e limites seria pouco para o que percebia como pecados. Para o egoísmo do pesar. Foi o que Kevin deu a entender na noite anterior.

A voz dele repetia-se freneticamente, aumentava dez decibéis por segundo na mente de Nimue.

"- Só sofre quem quer. Não gosto de quem prolonga tragédias. Alguém morreu? Enterre e deixe que a pessoa tenha o direito tão sagrado do descanso eterno. Para quê apegar-se a espectros do passado?! Esse tipo de atitude só paralisa, só prende. "

Ele estava tão preocupado em manter o discurso acaloradamente cruel que sequer percebeu quando Nimue deixou-o falando sozinho. Mal conseguia equilibrar-se e deixou-se cair no chão do corredor por longos minutos.

Escutava a voz de Kevin ao longe, e outras sobrepunham-se. A orquestra de dentro da sua cabeça ainda a enlouqueceria. Se não pelos acordes caóticos, seria pela dor que provocava. A razão a abandonava e a dor brincava. Levou as mãos às têmporas, inutilmente, em uma tentativa de conter o impulso doloroso.

Cambaleou até o banheiro, quando sentiu que não estava mais tão frágil. Ainda assim, as mãos tremiam e a vertigem já havia se instalado definitivamente. Mal percebera que agarrara-se à pia com toda a sua força. Evitava olhar o espelho, até o momento em que não teve mais forças para evitar.

Era uma tarde de inverno em Londres. A despeito da quase convenção que determinava impessoalidade e contato mínimo, o jovem casal andava de mãos dadas. Sorriam, eles mesmos um mundo à parte.

"Felicidade nunca dura muito", foi o que pensou, ao deparar-se de repente com os detalhes da cena. Ela transfigurava-se e podia mais do que ver, sentia. Sentia a vertigem, o ventre despontando-se sob as roupas, e o sangue...

Não há arte divina na perda.

Então, acontecia. A pressão da mão sobre o ombro, o olhar cheio de rancor e até mesmo ódio, e as palavras que não precisavam ser ditas. O rompimento. As transigurações mais que internas. O abatimento da mulher, o harpista refugiando-se na música, mas ainda sem afastar-se fisicamente.

Voltas e voltas. A montanha-russa fazia questão de confundi-la, misturando todas as lembranças com as visões recentes e sonhos do passado. Tinha a impressão desconfortável de estar completamente desconectada da realidade, tal qual uma personagem de um livro que descobre-se marionete do escritor, ou alguém que desafia a gravidade, mas tem medo de altura. Era a crueza da realidade, com o paliativo do enigma. Com o inexplicável das emoções descontroladas. E no outro dia, era apenas a chuva, a dúvida, o pranto e o abraço.