Fragilidade.
A vida é delicada. Asas de borboletas, pétalas de flores. Um toque, ou uma maneira incorreta de tocar, põe tudo a perder...
Acontecia a qualquer hora. Sem aviso. Pequenas mortes súbitas. Pequenos pontos de ferrugem acumulando-se pouco a pouco, o arrastar das horas, a chuva fina que não passa (mas pesa). Eternas interrogações.
Suspirava porque recusava-se mesmo a respirar como os outros. Os Outros, as Visitas, a espantavam. Com todos os olhares críticos, funestos, vazios. Opacos. Reais. Mais a assustava era a realidade, olhares como objetos palpáveis e a piedade forçada que refletiam.
“E...Deus!” – Exclamava, para logo depois perder-se. Existiria mesmo um Criador, uma Inteligência Superior ou o que fosse? – “Não, não. Impossível. Quero crer no impossível”.
Ensaiava a queda. Com saltos. Fuga interrompida. Retalhos de seda no arame farpado. Não era um momento para a platéia.
Distanciando. Aproximando. O ritmo mudava, e as expressões pavorosas ficavam, espreitavam. Almas mumificadas em casulos.
Não se sustentavam. Quem não se sustenta, precisa de clausura. Ela desfizera completamente o próprio casulo, a custo de sustos, e até a custo de sonhos. Tudo para viver o mundo. Ou viver fora dele.
Divagava e alucinava. Se tivesse um mar perto, cedo ou tarde entraria e deixaria-se tragar para o fundo, apesar de saber nadar. Sonambulismo como cargo vitalício. Era uma sonâmbula. Entorpecida, pálida, magra demais: quase invisível. Quase, porque sabia que exisitia, e sabia que a imagem no espelho é um reflexo.
Apanham-na. Mal sabem que a prisão começa a esfacelar o ser já fragilizado. Mal sabem que ela se entrega totalmente a tudo, e a todos...
Agora são as mãos dos outros o objeto do terror, mãos sequestradoras. Apreendem o ser esfacelado.
Em algum plano distante, em alguma perspectiva que vem do interior dela, a platéia aplaude a fragmentação. É apenas isto o que querem: não pedaços, mas um grão dela.
Colocam-na atrás de grades douradas, algo que já deixou de importar há muito. Jamais faria diferença, na verdade. Grades são grades, certo? O mesmo método de privar da liberdade. O ouro não importa. O tempo corre sem clemência, o passado espreita pela janela da vida e sopra segredos ao vento...
A mão pequenina do garoto afastara-se dos cabelos dela para pousar sobre a boca de criança.
- Psiu. Você não quer acordá-la, Viviane. Se a tia Sophie descobre que estamos aqui, estamos no sal.
Viviane retorceu os lábios, contendo o choro.
- Ela vai ficar bem, não vai?
- Que pergunta! É claro que vai. Não vê que nós estamos aqui, de pé? Ela vai melhorar logo.
As crianças conversavam através de sussurros. Quando abriu os olhos, a luz do quarto sobrepujava a luz da tarde alta. Tudo estava ainda desfocado, via apenas vultos alternando-se com o clarão.
Perder acrescenta. Acrescenta distância no olhar e medo de deixar-se tocar.
Os passos de Sophie Soris eram apressados como sempre, porém ainda causavam estranheza entre os demais funcionários sorumbáticos do hospital. Em suas palavras, eles pareciam mais doentes que as pessoas que eles atendiam diariamente.
Prontamente impuseram-lhe a loucura. Não sabiam que ela levaria a sério, e daria um golpe de Estado todas as terças-feiras. Rir seria lei por um dia, no pequeno reino de paredes brancas.
Aquela terça-feira, entretanto, era atípica. Sophie sentiu a máscara cair. Os sentimentos conturbados inundavam-lhe o ser. O mundo girava rápido demais, enquanto seus passos eram miúdos, vagarosos, sofridos.
O semblante retomara a seriedade que não fora visto por anos, uma rigidez quase desconhecida. Tentara a todo custo fingir que estava tudo bem, tentara retomar a essência que impusera a si mesma. Mas não admitiria perder mais alguém.
"É uma criança!"
O dia carregava surpresas.
Deparou-se com Michael e Viviane adormecidos ao lado de Nimue. Ela, aparentemente, tinha recobrado a consciência, mas ainda assim, os olhos pareciam seguir objetos irreais e a fraqueza era mais do que evidente. Não era hora de censurá-la, mas os olhos de Sophie denunciaram o desgosto.
- Sei o que está pensando. Mas cheguei a um ponto em que nem eu sabia o que estava fazendo, ou onde estava.
As palavras foram pronunciadas em um fio de voz trêmula. Sophie apertou os olhos e os punhos, na tentativa de defender-se de perigos incorpóreos. De fantasmas e memórias. Jamais poderia cogitar que a melhor amiga, desde a infância, algum dia atentaria tão violentamente contra a própria vida.
Que demônios a atormentavam tanto, se as experiências eram, de certa forma, semelhantes? Sophie lutava contra o pensamento egoísta, negando-o. Foi inevitávvel, entretanto. Havia uma inversão de papéis ali. Um amor pode ser encontrado cedo ou tarde na vida, mas um irmão jamais é substituído.
Depois de cinco anos, percebe-se que não se pode evitar a morte, não se pode evitar a saudade, a lacuna gritando dentro da alma, implorando por algo que complete aquela parte perdida. Talvez Nimue estivesse certa, na tentativa de finalizar tudo. A morte preenche. A falta preenche, acrescenta.